Covid-19 e Avós

Abri os olhos. 

Hoje o dia estava cinzento. Coincidência ou não, não me sentia muito bem. Talvez as duas semanas de quarentena comecem a finalmente fazer efeito. Abri o Facebook. Vi o vídeo do Sr. Alberto Carvalho do jornal da TVI. Pensei que não me tivesse afetado, mas afetou. Não consegui fazer exercícios hoje. Tinha o almoço para fazer para o Samuel, mas as ideias para o almoço esgotaram. 

Comecei a pensar nos meus. Eu tenho uma esperança, uma esperança maravilhosa da parte de Deus na qual acredito muito. Mas o “hoje” é que está aqui, e o "hoje" pesa, o “hoje” preocupa, o “hoje” causa ansiedade. Chorei. Tenho medo. Ao mesmo tempo que não concebo na minha mente que possa acontecer algo mau a algum dos meus, o dia de hoje trouxe-me saudade e trouxe-me medo de os perder. 

Agora vejo, devia ter abraçado mais, devia ter visitado mais vezes os meus avós, devia ter dito mais vezes: “eu gosto de ti”, devia ter conversado mais, devia ter feito mais perguntas, tirar mais fotos com os meus avós e com os meus pais, conhecer mais a história deles. E se acontecer? A ansiedade apodera-se de mim. A minha mãe liga-me, o meu porto seguro. Ela tem sempre a palavra certa para me levantar para cima. 

Decido ligar para a minha avó. Ela é do norte. Aquela mulher rija que já passou muito na vida, e que nem idade, nem doença, nem chuva nem calor a impedem de ir tratar das terras e dos animais. Tudo isso, não para vender, mas principalmente para poder dar aos seus filhos e netos. Ir à terra e não trazer o carro a rebentar pelas costuras e ficar com o cheiro das cebolas no carro durante uma semana, não é ir à terra. Sempre a conheci teimosa. Sempre a conheci forte. Por mais que os filhos digam para ela largar as terras e vir para Lisboa para ao pé dos filhos, ela não aceita. Os médicos também não a convencem. As dores muito menos. Ter a alegria dos netos a encher a casa, ter os filhos à roda da mesa a discutir, ás vezes feio, mas nunca mais forte do que o laço que os une, é a única recompensa que ela precisa. E no fim a última palavra é dela. Ver os filhos chateados, sabem eles, é a maior dor dela. Então no fim, tudo se resolve. Porque os irmãos são para se darem bem, porque a minha avó assim ensinou. E os filhos respeitam. 

Mas agora tudo mudou. A casa está em silêncio há demasiado tempo. Não se ouve discussões, gargalhadas, gritos dos netos e choros de bebés. A voz dos filhos e dos netos ouve pelo telemóvel, mas sem o conforto de um abraço e de um sorriso. Os filhos preocupados pedem para ela ficar em casa. Mas como alguém a quem as contrariedades da vida nunca a impediram de nada, pode aceitar agora que existe um vírus invisível na rua, que não a deixa ir nem sequer à farmácia? É difícil. A teimosia, a vida e a idade não ajudam. Os filhos ligam uns atrás dos outros: “A mãe não pode sair”, “A mãe largue as terras” ou “Se continua assim vem para Lisboa”. É preocupação ela sabe, mas nunca nada a impediu de nada, como aceitar agora isto? 

Mas hoje ao falar com a minha avó fiquei admirada. Estava sensível. Também tinha ouvido o Sr. Alberto da TVI a falar. Assim como a mim as palavras dele tiveram uma força como nenhuma palavra até agora tinha tido. E ela percebeu. Percebeu que ficar em casa é o mais bonito ato de amor que ela pode fazer pelos seus filhos e netos. Continuamos a conversar, pedi para ela falar com Deus todas as noites, falar o que lhe vai no coração. Assegurei que a amo muito e que estou desejosa de a voltar a abraçar. Ela respondeu com o seu jeito de mulher do norte. O meu coração ficou mais calmo. 

Era a vez do meu avô. Devido aos problemas de saúde está na casa do filho mais novo em Mafra. Ele, um homem do norte acabou por gostar da vida aqui mais perto de Lisboa. Queria que a avó tivesse com ele, mas depois de tantos anos já aceitou que ninguém lhe dá a volta. O meu avô é mais sereno, ou talvez resmungue mais para dentro, enquanto que a minha avó extravasa mais para fora o que o coração grita. O meu avô tem uma vida já longa, de muito trabalho e aceita melhor que a minha avó, que chegou a hora de descansar. Esteve na Suíça comigo, cuidou de mim enquanto os meus pais trabalhavam. Brincava e fazia-me rir. Infelizmente foi pouco tempo. 

Não tive o privilégio de crescer com os meus avós. Durante muito tempo achei que os avós viviam todos no norte e que todos tinham uma “terra” para onde passavam algumas semanas do verão. Mas ainda bem que assim foi. Ter eles longe tornou cada visita ainda mais especial. A correria até chegar à casa dos meus avós, a mesa já preparada com salpicão, pão, marmelada, alheira. Enquanto preparava a canja da avó, a massa com carne o cabrito do forno. Sim porque a minha avó nunca soube cozinhas poucas quantidades. Nunca foi uma casa perfeita, bem longe disso. A confusão e desorganização está nas veias da família Oliveira Matias. Mas o amor há ainda em maior abundância. A minha avó nunca recusou comida ninguém aparecesse quem aparecesse e ás horas que fosse. 

Foi lá em Castro Daire que senti a terra, deixei fugir um dia as vacas que a minha avó mandou pastar, tinha ataques de riso com as cócegas do meu tio, andei a cavalo, abraçava os coelhos mais fofos de sempre, assisti à fuga dos leitões, brincava no tanque da aldeia e chegava toda molhada a casa, aventurava-me pelo meio dos bosques, concebendo na minha mente uma história digna de um livro de "Os cinco", ouvi muitos ralhetes da minha avó com o meu avô a tentar dizer para a avó não ligar e principalmente, foi em na casa dos meus avós que aprendi o que é ser uma família. É verdade, foi a minha avó que mesmo não sabendo ler mostrou ser a mais sábia de todos os 7 filhos e 11 netos. Que ensinou o mais importante e que não se ensina na escola: a amar e a ser honesto. 

Agora só quero que isto passe. Percebo a dor dela, percebo a dor do silêncio, da saudade, e isso deixa-me triste, porque a minha avó merece ser feliz. Mas sei que ela só o é com os seus à roda de uma mesa cheia de comida. Comida tirada do suor e da terra dela, plantada e cozinhada com o seu amor pela família. Por isso, por favor Deus, que seja em breve. 



Nota: Quando isto acabar, o meu alvo é tirar fotos com os meus avós, sem dúvida nenhuma.




Comentários

  1. Você escreve muito bem. Parabéns

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  2. É uma realidade, amei a sua história.
    Independentemente da nossa esperança quanto ao futuro, devemos aproveitar todo o tempo possível com os nossos amigos e entes queridos 🥰 pois no futuro, não teremos de nos preocupar com o imprevisto.

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